sábado, 13 de julho de 2013

Sonata do bardo 3


16º dia do 7º mês, Luvitas. Ano 1400.

Ele estava ali, num canto do grande salão. Enquanto meu grupo tocava ─ e a galera dançava, ria, jogava e comia ─ ele me olhava fixamente. Frio e calculista. E quando percebi que ele existia, errei uma nota.

Já estávamos em Luvian há um dia e mais um pouco. Tínhamos nos apresentado para algum tipo de regente do lugar. O homem se mostrou simpático para um bando de bardos viajantes querendo fazer dinheiro naquela cidade... que não era lá grande coisa. Sério. Esqueça o que leu ou ouviu falar sobre Luvian. O lugar me roubou um bocejo de tédio a primeira vista. Não há nada excepcional ali. Talvez você encontre uma boa bebida em uma taverna, ou até mesmo uma boa sela de couro para sua montaria; mas em grande maioria, num vislumbre geral e primário, Luvian não é de encher o olho. Sabe, aquelas cidades autossuficientes e estagnadas num comodismo tranquilo, com um único ferreiro, duas únicas tavernas, uma estalagem, um cemitério, um templo com meia dúzia de religiosos, uma horta com dois agricultores, um vendedor de cavalos, uma vendedora de artesanato, uma vendedora de roupas, um chefe de guarda liderando seus 30 guardas, e só. De resto, pessoas comuns, ajudando ali e aqui ou cuidando de negócios menores. Aquele pessoal parecia bem tradicional, na maioria velhos indivíduos que prezam uma vida pacata e simples de divertimento quase nulo. E o lugar estava meio morto: uma grande área coberta de barro e neve, com estruturas mal-acabadas.

─ Talvez seja por causa da época do ano ─ Disse Rark. Realmente, o inverno poderia ter colaborado para aquela visão de cidade moribunda. Mas a primeira impressão é a que fica. Ao menos eles tinham um salão de festas, o que nos era suficiente.

Negociamos com o regente e ele gostou da ideia de dar aos moradores da cidade algumas noites de música e festejos, ainda que bem modestos. Na verdade, dentre alguns dias eles fariam algum tipo de rito para os deuses ou coisa do tipo, e talvez os deuses não se importassem se a festa fosse adiantada para aproveitar nossa passagem.

─ Que coincidência, não é mesmo? ─ disse o regente, pouco depois de dizer que estavam sem músicos para os ritos da cidade ─ Me parece que os próprios deuses mandaram vocês.

Estávamos num aposento dele, em sua casa surpreendentemente quente e bem feita, totalmente ao contrário do restante de Luvian. Minha sugestão era que o homem sabia ser um político, e como bom político, é preciso administrar bem a própria casa antes de qualquer outra pendências na cidade. E fazer uma bela festa, na cabeça dele, era o mesmo que administrar bem essas outras pendências.

Eu disse o nosso preço e ele coçou a barba, contabilizando. E fechamos o acordo de ficar na cidade em cerca de três dias; ao fim, ouro em nossos bolsos e os nomes Torinks, Rark, Grilo e Larien nas bocas dos moradores dali ─ caso o nosso desempenho fosse satisfatório, claro.

O primeiro dia de festas foi normal. Tocamos poesias mais conhecidas que, creio, agradou a maioria. Não éramos o foco das atenções, veja bem. Éramos apenas os músicos que ilustravam um evento tradicional deles. E isso bastou ─ rodadas de enxofre líquido de graça para nós e satisfação escrita na face dos presentes. Estávamos indo bem. Até que...

─ Torinks, tudo bem?

Acordei do meu transe. Olhei para o lado e vi Grilo me encarando com preocupação. Estávamos num intervalo breve: Rark bebia alguma coisa enquanto; Larien trabalhava na afinação de sua Harpa, para estar no tom certo quando entrasse o próximo ato; e Grilo pegava no meu ombro como se eu estivesse ferido.

─ Cara, você nunca errou aquele trecho ─ ele disse, me estranhando. ─ Tudo bem?

─ Sim ─ ele me olhou esperando algo mais. Assoviei: ─ Tô bem sim, relaxa ─ e um sorriso para tranquilizá-lo. Ele murmurou algo e foi beber com o Rark. Eu aproveitei para respirar.

Cadê? Onde ele está?

Eu estava de pé, apertando os olhos para o salão, tentando enxergar além do ambiente fumacento de porcos assados e outras iguarias exóticas que chiavam quando beliscadas por um talher.. Espera, onde, em um lugar como Luvian, arranjaram aquela culinária bem feita...? Droga, não importava. O que importava era aquele cara. O frio e calculista que me assombrou pelo tempo de um disparo de flecha. Errei uma nota por causa dele!

Ali! Sentado, mastigando um petisco e me olhando de volta. Sim, eu tinha certeza agora: aquele era um sobrevivente. Eu mesmo o tinha acertado ─ uma flecha na barriga. Lembro que o vento estava impetuoso, deve ter desviado a mira do peito para a barriga, no instante do meu disparo. Mas mesmo assim, ele me pareceu suficiente morto. Ao menos acreditei que Rark terminou o serviço enquanto eu atirava em outros daqueles calhordas amadores. Agora, estão todos no pós-túmulo e sabem que não é legal irritar bardos. Todos, menos aquele. Vivo. Uma ameaça.

Ele se levantou, ainda me encarando. Eu lambi os beiços secos. A festa rolava animada. Meus colegas faziam alguma coisa. Alguém gritou pedindo música. Eu apalpei minha cintura; senti a bainha da faca. Deveria bastar, pois aquele cara não iria me oferecer desafio. Claro, eu contava que ele ainda estava ferido. Na verdade, eu não pensava muito na hora. Raciocinei que teria de arrastá-lo e fazer o serviço lá fora, longe do povo. Dei um passo determinado na direção do homem, faltavam mais 26 pesadas. Ele tinha um estilo ameaçador, mas eu acreditava estar mais sombrio que ele. Tanto que minha aura deve ter congelado ele no lugar, a julgar sua falta de ação. Não fazia nada ─ nem respirava, aposto meu alaúde nisso. E meus olhos falavam alto, falavam que eu ia matá-lo.

Daí ele gritou. ■


Hoje. 8º dia do 1º mês, Altossol. Ano 1401.

O ano acabou e eu brindei o ano novo na minha cela fedida. Sempre penso que poderia ser pior: não tem outros tantos sujeitos mal encarados dividindo o mesmo espaço cúbico em que vivo. Quando penso nisso, fico feliz em estar só.

Me mandaram tinta faz alguns dias, mas eu estava com bloqueio para produzir. Escrevi um monte de besteiras, com vários erros e ideologias superficiais e infantis. Já estava desistindo de continuar essa Sonata. E para minha surpresa ─ e desagrado, veja só ─ meu inculto carcereiro me cobrou a parte três, alguns dias depois que li a parte dois pra ele.

─ E então, parou de escrever é? ─ Ele cassou. Estava de bom humor ao ver minha falta de inspiração. ─ Que merda hein? Pensei que você aproveitaria o seu tempo livre.

O que ele quis dizer com tempo livre é: o tempo que eu tenho antes do dia da minha execução.

Eu xinguei ele, mas até nisso me faltava inspiração e ele riu de mim de novo. Então pedi pra ficar sozinho e ele disse que era meu carcereiro e tinha de ficar de olho em mim. Desgraçado.

─ Eu realmente queria saber como seus amigos morreram. ─ Dizia meu carcereiro. Eu estava orando para que Nimb rolasse dados para acelerar minha execução, assim eu não precisaria suportar o bom humor do Morphis, meu carcereiro amigão ─ Você estava presente quando ─ e ele se interrompeu quando alguém entrou no calabouço.

Eu levantei a cabeça e fiz outra rápida prece dizendo que "era brincadeira, Nimb, não leva a sério".

Um soldado caminhou até a frente da minha cela. Inspirou o fedor que eu produzi nos últimos dias, olhou para Morphis com uma cara de “como você aguenta isso, seu animal?”, voltou a olhar pra mim, abriu a boca pra falar mas resolveu cuspir um catarro entalado na garganta e engatilhado com o nojo do local. A massa verde com pequenas bolhas caiu próximo ao meu pé. Olhei do escarro pra ele e esperei com a serenidade de um sacerdote.

Ele disse:

─ Faça suas últimas orações. Amanhã acaba o seu tormento ─ pensei que ele ia cuspir de novo, mas só girou nos calcanhares e saiu. Morphis saiu logo atrás. Fiquei só.

Amanhã. Certo, recado recebido.

Eu não tinha mais orações, mas resolvi escrever a parte três deste relato no restante do meu tempo livre. Infelizmente, o que chamo de Sonata do Bardo ficará incompleto. Pelo que me lembro, eu ainda poderia escrever mais um punhado de palavras em memória dos dias em que meus amigos ainda estavam vivos, antes de tudo isso. Mas, vendo pelo lado bom, dizem que a melhor arte é aquela que não tem desfecho.

Já eu...bem, terei um desfecho, amanhã, na hora da minha execução. ■

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